Marginais. É assim que muita gente enxerga quem participa de torcidas organizadas de futebol, especialmente se no jogo houve alguma briga, tumulto ou morte. É mais fácil imaginar que sejam vândalos, bárbaros, do que se confrontar com uma realidade que pode surpreender: talvez sejam gente comum. É o que constata em trabalho inédito a pesquisadora da Faculdade de Educação Física da Unicamp Heloisa Reis. “Os resultados põem por terra a generalização de que torcedores organizados são vadios.”
Para chegar a essa conclusão, a coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas de Futebol fez um perfil minucioso do torcedor organizado. O trabalho, a que CartaCapital teve acesso, será concluído em setembro e pesquisou 813 filiados da maior torcida organizada de cada um dos três principais times da capital paulista (Corinthians, São Paulo e Palmeiras). Além de informar as características sociais, eles opinaram sobre as causas da violência dentro e fora dos estádios. Interessada nesse tema, Heloisa pesquisou apenas o gênero e a faixa etária dos principais algozes e vítimas de atos violentos – homens entre 15 e 25 anos.
Em vez de pobres marginalizados, encontrou rapazes instruídos, de famílias estruturadas. “Os torcedores organizados têm bom nível educacional, moram com os pais e, além disso, têm noção da própria responsabilidade nos acontecimentos violentos”, expõe Heloisa. O próximo passo será pesquisar todo o País. Conhecer a fundo o torcedor é, segundo a pesquisadora, indispensável para enfrentar a violência de forma eficaz. “Na Europa, as mudanças partiram desse diagnóstico.”
Para o ministro do Esporte, Orlando Silva, os resultados reforçam a convicção de que não faz sentido marginalizar o torcedor organizado. “São grupos legítimos com quem o Estado precisa dialogar cada vez mais”, disse à CartaCapital. O ministério financiou o estudo.
Apesar de cores e hinos diferentes, a condição social e as opiniões de palmeirenses, são-paulinos e corintianos são muito parecidas. “As informações se repetem independentemente do time”, diz Heloisa. E morre outro clichê: o de que existem torcidas da elite e outras mais carentes.
Aos dados.O torcedor organizado é solteiro (94%) e católico (62%). Vai ao estádio sempre (40%) ou muito frequentemente (45%) – mesmo que a partida seja televisionada. Neste caso, o faz pela emoção do estádio (52%), por amor ao time (30%) e para torcer em grupo (12%). A maioria trabalha (61%) ou estuda (27%), onde 9% não informou a ocupação e 3% está desempregada, menor que a taxa brasileira, de 8,1%. (Clique na tabela acima para ampliá-la)
No entender desse torcedor, há dois principais motivos para a violência. Em primeiro, fatores ligados ao adversário (rivalidade, fanatismo e provocações), com 31,5% das respostas. Em seguida, com 30%, fatores ligados à própria torcida (falta de educação, vir para brigar, estupidez).
Outros 19,5% dos entrevistados creditam a violência a fatores externos (polícia violenta, mídia, desempenho do time, diretoria dos clubes, falta de estrutura e impunidade). Apenas 6% consideram que o consumo de drogas e álcool leva à violência, enquanto 5% a consideram um reflexo da sociedade, dissociado do futebol.
Heloisa vasculhou em detalhes a contribuição dos jornais, rádios e televisão para o problema. Para 47% dos entrevistados, a mídia estimula a violência ao explorá-la (incentivam a rivalidade, provocam torcedores,- buscam ibope). Para 17%, a mídia contribui ao estigmatizar as torcidas (mostra só o lado ruim, chama de vândalos). Uma proporção parecida, 18%, discorda: considera que a mídia incentiva a paz e mostra a realidade. E 14% criticam a manipulação da informação pela imprensa.
Recentemente, o Brasil foi apontado como líder do ranking de mortes ligadas ao futebol pelo sociólogo Mauricio Murad, da Uerj e da Universidade Salgado Oliveira. Ele contabilizou 42 óbitos de torcedores em conflitos dentro ou próximo a estádios de futebol nos últimos dez anos. Em pesquisa semelhante, Heloisa Reis (em parceria com a Universidade de Amsterdã) contabilizou 35 vítimas de homicídio no mesmo período.
Os números não batem por diferenças na metodologia e na data exata da contagem. Mas, ao contrário do colega, Heloisa discorda que o Brasil lidere um ranking. “Afirmar isso é temerário e perigoso. Não há levantamentos mundiais confiáveis e, além disso, uma divulgação desse porte pode maximizar um problema já grave e atrair jovens violentos para o futebol”, alerta. Ela diz que a mídia inglesa, ao difundir o vandalismo nos estádios nos anos 1980, só fez aumentar a violência. A tese faz sentido. Tanto que, hoje, na Europa, nem mesmo invasões de campo são mostradas na tevê. Sem repercussão, tendem a diminuir.
Para Murad, mais importante do que constatar a violência é como a sociedade reagirá a ela. E considera exemplar o caso da Argentina. “Basicamente, nos últimos três anos, eles apertaram a legislação, punindo não apenas torcedores como dirigentes (de clube e de torcidas) que incitassem a violência, fizeram campanhas educativas na mídia e controlaram o consumo de álcool.”
Essas medidas são inspiradas no que funcionou na Europa (Itália e Inglaterra) para diminuir o problema. A elas deveriam se somar, segundo Heloisa, a melhora na venda de ingressos, ampla divulgação do Estatuto do Torcedor, a atuação do Procon e do MP, um código de ética para a mídia divulgar violência, a mudança do horário das partidas para no máximo 19h30, a criação de comissões estaduais e a retomada da Comissão Nacional de Prevenção da Violência (criada em 2004 e estagnada), além de uma polícia especializada em eventos esportivos. “Isso deveria ser feito antes de 2014, mas não acho que ocorrerá”, hesita a professora.
O ministro Orlando Silva se diz ciente da “gravíssima” situação da violência no futebol. Menciona a padronização das normas técnicas dos estádios como um avanço (deve vigorar no Campeonato Brasileiro de 2010) e diz que o Ministério da Justiça começou a treinar policiais militares especialmente para lidar com torcedores. É pouco, tardio, mas um começo.
Carta Capital
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